Ao lerem o título desta crónica, naturalmente que vos vem a cabeça perguntas do tipo: Que raio tem a ver uma coisa com a outra? O quê que o suicídio assistido tem a ver com a legitimação perante a lei dos homens de uma relação amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo? Talvez nada. Talvez tudo.
A abordagem simultânea que faço a dois temas tão distintos e polémicos nas sociedades actuais não é de todo inocente. Numa semana em que acompanhamos a situação de Eluana Englaro, uma mulher Italiana que após 17 anos ligada às maquinas em estado vegetativo e 10 anos de infindáveis batalhas politicas, religiosas e judiciais, viu finalmente confirmado pelo supremo tribunal Italiano “o seu direito à morte assistida” e onde ficamos a conhecer a intenção do secretário-geral do PS e Primeiro ministro de Portugal, José Sócrates, em levar ao congresso do seu partido uma moção de orientação política onde propõe "a remoção de barreiras jurídicas à celebração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo”, dei comigo a pensar seriamente nesses dois assuntos sérios, assistindo as discussões infindáveis que esses temas fracturantes normalmente fazem eclodir nas sociedades de hoje e observando mais uma vez as ligações perigosas que ainda persistem entre a politica e a religião. Como normalmente faço nas poucas vezes que penso seria e profundamente em algum assunto serio, vesti a pele das partes interessadas e cheguei à conclusões “interessantes”:
1 – Se eu fosse um gay ou uma lésbica, de certeza que me agradaria muito poder usufruir do direito que qualquer pessoa tem nas sociedades civilizadas de se casar com quem bem lhe apetecer, seja por amor, pela atracão física ou até mesmo pela atracção financeira.
2 – Se eu estivesse confinado a uma cama de hospital durante alguns anos, como consequência de um azar qualquer que tivesse na vida (toc, toc na madeira) ligado às maquinas em estado vegetativo, sem esperanças de recuperação e aguardando pacientemente o dia da minha morte, toda a minha alma agradeceria profundamente à pessoa que generosamente pusesse fim a esse sofrimento e acabasse com o desgaste físico e mental a que estaria sujeito, “libertando” também a minha família e amigos mais próximos desta pesada cruz.
3 – Se eu fosse um politico populista numa sociedade conservadora, um membro efectivo ou simples adepto ferrenho de uma qualquer religião, apegado aos dogmas bíblicos ou apenas um cidadão tacanho que se recusa a aceitar as mudanças sociais que têm acontecido no nosso dia-a-dia, com certeza que abominaria a ideia de duas pessoas do mesmo sexo poderem ver a sua situação de união “anormal” amparada nos braços da lei.
4 – Se eu continuasse a ser o mesmo politico populista numa sociedade conservadora, o mesmo membro ou praticante ferrenho de uma qualquer religião, de certeza absoluta que defenderia solenemente a premissa suprema de que só devemos deixar esse mundo quando e como o SENHOR entender e nunca antes da altura “marcada” e muito menos por interferência de outro qualquer pecador. Ah, se eu tivesse um familiar próximo ou um amigo chegado confinado a uma cama de hospital, ligado a uma máquina sem hipóteses de recuperação, de certeza que travaria dentro de mim uma luta acesa entre o “aceitar” que se terminasse com o seu sofrimento, mesmo a pedido dele e o “lutar” para que ele se mantivesse vivo, mesmo em situação precária, apenas para suprir o desejo egoísta que todos temos de querer ter as pessoas que nos são queridas perto de nós e entre nós.
Como sempre acontece quando nos “metemos” na pele dos interessados em questões de consciência, acabamos por não chegar a conclusão nenhuma, porque cada um tem os seus motivos, as suas crenças, os seus interesses e as suas próprias experiencias para sustentar o seu ponto de vista ou a sua intransigência. Eu pessoalmente acho que nas duas situações em análise, por se tratar de questões de consciência, acima das politiquices e dos dogmas caducados da igreja, devia prevalecer o nosso livre arbítrio, sustentado naturalmente na premissa maior de que “ a nossa liberdade termina onde começa a do outro”. Podemos não concordar com o casamento homossexual, ou melhor, podemos até não achar muita piada à relação homossexual em si, mas temos que aceita-la como facto consumado nos dias que correm e respeitar os que seguiram por essa via. Podemos achar eticamente imperdoável que uma pessoa em qualquer circunstancia possa por fim a sua própria vida ou pedir a outros que o façam por ela, mas temos que entender que há momentos especiais na vida em que a própria vida torna-se sofrida e sem significado, por isso temos que aceitar e respeitar que o “dono” dessa vida decida acabar com ela como forma de por fim ao seu sofrimento.
Naturalmente que não defendo o livre arbítrio cego e desgovernado, porque como seres sociáveis, não seriam raras as situações em que o nosso livre arbítrio fatalmente acabaria por entrar em colisão com os direitos de outrem ou com as regras instituídas, logo, nos dois assuntos em questão, caberia aos políticos, deixarem de lado a hipocrisia e definir as regras que levassem as pessoas a poderem optar por aquilo que mais lhes conviesse em cada um dos casos. Se é ponto assente que cada vez mais há casais homossexuais assumidos, se muitos inclusive já começam a “juntar os trapinhos”, porque não lhes dar o direito de ver essa relação reconhecida perante a lei? Se há casos de pessoas em estado vegetativo que acabam por falecer repentinamente em circunstancias obscuras, por conta da piedade de um medico ou enfermeiro, porque não permitir de uma vez por todas que essas pessoas tenham um final de vida digno? Por que não definir regras para evitar os equívocos que as vezes acontecem e que custam a vida de muitos que se calhar foram mal diagnosticados e careciam de uma segunda opinião competente? Porque continuar a tapar o sol com a peneira e fazer de conta que nada se passa?
Foi assim na questão do aborto, que mesmo proibido por uma lei conservadora e moralista, acontecia em cada clínica clandestina desse País em condições precárias e continua a acontecer em cada clínica clandestina desse mundo fora, nos Países onde os políticos ainda não foram “iluminados” para perceberem que a melhor solução para esse fenómeno é a sua legalização e o estabelecimento de programas de informação e acolhimento para evitar as milhares de mortes e os inúmeros problemas que padecem as mulheres que recorrem a esses lugares.
È assim na questão da prostituição, que mesmo “proibida”, continua a proliferar em cada cidade e bairro desse País, enriquecendo pessoas de má índole e permitindo também o aumento de “mazelas” sociais como o tráfico de mulheres, o tráfico de droga e as doenças sexualmente transmissíveis. Todos sabem que a prostituição existe, deparamos com ela nas páginas dos classificados dos jornais, nas ruas, em bares de alternes e em casas de striptease, então porque não legalizá-la de uma vez por todas? Porque não transformar essas mulheres e homens em trabalhadores honrados que cumpram com as suas obrigações fiscais como todos os outros contribuintes? Porque não regulamentar o sector de forma a acabar com os “chulos” e instaurar a obrigatoriedade da inspecção médica?
Pese embora os conflitos de ordem moral que possam existir nas questões que frisei, penso que seria de todo útil que houvesse coragem politica para regulamentar aquelas situações que temos como casos consumados, de forma a evitar que as pessoas continuem a agir fora dos braços da lei e permitir que cada um possa optar por aquilo que quer, de acordo com a sua consciência.
Legalizou-se o aborto e quem é contra o aborto pode continuar a ser contra, resguardado nos seus princípios éticos, mas deu-se hipótese aos que são a favor de poderem optar por uma saída segura. Legalize-se então o casamento homossexual e a eutanásia. Os que são contra, poderão continuar a ser contra, bastando que se abstenham de exercer esses direitos, mas ao menos daremos aos que estão a favor o direito de poderem optar sem estar a cometer nenhum tipo de crime. Creio ser esta, a essência da cidadania.
Esta tua deriva ultra-liberalista pode tornar-se perigosa. Foi mais ou menos isto que aconteceu à liberalização da banca e dos mercados, e que culminou com a super crise que vivemos hoje em dia...
ResponderExcluirEmbora perceba o teu argumentário, pergunto-me o que os nossos filhos irão querer liberalizar, e os nossos netos? haverá algum ponto de equilíbrio? liberalizar os casamentos homossexuais parece-me razoável, mas legalizar a eutanásia pode ser uma espada de 2 gumes. Poderemos ter pessoas que se aproveitam desta abertura para cometer suicídio, ou talvez homicídio. Quantas pessoas acordaram de um coma profundo ao fim de mais de 20 anos? Será justo tirar-lhes essa hipótese? Uma pessoa que esteja mentalmente doente, terá menos direito à eutanásia do que aquele que tem um sofrimento "mensurável"? Alguém que tenha uma dor de cabeça muito forte e quizer morrer por isso, terá esse direito? (como é sabido, é muito difícil medir a intensidade dessa dor em terceiros). Só os que estão em estado vegetativo terão direito à eutanásia? E os outros doentes que embora não estejam nesse estado, sofrem imensamente? É necessário ter muito cuidado ao mexer com a eutanásia pois não é possível voltar atrás depois de consumada.
Meu caro, peço que tenhas atenção às seguintes passagens do texto:
ResponderExcluir“Naturalmente que não defendo o livre arbítrio cego e desgovernado, porque como seres sociáveis, não seriam raras as situações em que o nosso livre arbítrio fatalmente acabaria por entrar em colisão com os direitos de outrem ou com as regras instituídas, logo, nos dois assuntos em questão, caberia aos políticos, deixarem de lado a hipocrisia e definir as regras…”
“Por que não definir regras para evitar os equívocos que as vezes acontecem e que custam a vida de muitos que se calhar foram mal diagnosticados e careciam de uma segunda opinião competente?”
Penso que está claro que defendo a imposição de normas para precaver as situações que elencaste, embora aceite que isso só por si não significaria a ausente de alguns abusos, como os há em todas a s situações em que a vontade humana em prevaricar fala mais alto: conduzir embriagado, passar os sinais vermelhos, conduzir sem seguro, matar, roubar, violar e.t.c, Então não temos leis que proíbem claramente esses “excessos”? E isso impede as pessoas de prevaricarem quando lhes dá na telha? E porque achas que seria diferente na questão da eutanásia? Então achas que se alguém estiver firmemente decidido a se suicidar, haverá alguma lei ou a ausência dela que o impedirá? E o homicídio de que falas? Achas que isso já não acontece por esse mundo fora, mesmo em países onde seja proibido a eutanásia?
Defendo a liberdade com responsabilidade. A possibilidade das pessoas poderem optar livremente o caminho a seguir em matéria de consciência sem estarem presas à leis discriminatórias e injustas.
Para terminar, não querendo dar uma de bruxo, dado o caminho que têm percorrido as sociedades actuais, passo a elencar alguns temas que possivelmente levantarão acesos debates no “tempo” dos nossos filhos e netos:
A pena de morte generalizada, a liberação do consumo de drogas, a liberação da prostituição, a liberação da clonagem humana, a liberação das armas nucleares, a despenalização da poligamia e.t.c, e.t.c
Alguns verão nestas “previsões” a consumação do apocalipse, outros, simplesmente a evolução natural das sociedades Humanas.
Ah, só por curiosidade, quantas pessoas conheces ou já ouviste falar, que saíram de um coma profundo ao fim de 20 anos?