terça-feira, 5 de outubro de 2010

AINDA SOBRE O CASO "PIERRE N´DÉ".

Nos últimos tempos, um caso mediático tem merecido a atenção de todos os que seguem de forma mais ou menos atenta a realidade e actualidade de São Tomé e Príncipe. Falo naturalmente do braço de ferro jurídico protagonizado pelo Governo, na pessoa do senhor Ministro Carlos Stock e o cidadão camaronês Pierre N´Dé, suspeito da prática de fraude fiscal, contrafacção de bebidas alcoólicas e atentado à saúde pública, que na semana passada foi “convidado” a abandonar o país no prazo de duas horas a partir da notificação dos Serviços de Migração e Fronteiras, a mando do Ministro da defesa e ordem interna (um convite quase irrecusável, já que a sua residência foi cercada por vários elementos da policia nacional, que sem um mandado judicial, levaram-no para os calabouços).

Já muito se disse e se escreveu sobre esse caso, mas, por conversas tidas com alguns amigos e lendo e ouvindo algumas intervenções e comentários na rádio, televisão e no site do “tela non” (alguns comentários emotivos revelam até laivos de uma xenofobia camuflada, insuspeita até, num povo com fama de acolhedor e tolerante), dá para notar que ainda paira muitas duvidas na cabeça de muita boa gente, principalmente depois da tal nota de esclarecimento do Governo, que, além dos erros gramaticais, inaceitáveis a esse nível, revela considerandos jurídicos preocupantes, que evidenciam um certo desnorte em que o próprio Governo se encontra em relação a esse caso e faz-me concluir que o Ministro Stock precipitou-se, na prossecução do tal objectivo da reposição da autoridade do estado, adoptando mais uma medida populista para agradar “o povo”, na senda daquelas em que esse governo tem sido pródigo, ou então, mais grave ainda (já que ele é jurista), desconhece totalmente a constituição e as leis que jurou cumprir há menos de dois meses atrás.

Valendo-me de alguns conhecimentos que tenho a nível do Direito e como puro exercício de cidadania, decidi tentar sintetizar e esclarecer esse imbróglio como se de um caso prático da cadeira de Direito Constitucional se tratasse, com esperança de conseguir trazer alguma luz à discussão. Vamos então aos factos:

1 – O cidadão camaronês Pierre N´Dé reside legalmente em São Tomé e Príncipe há 8 anos e é titular de um cartão de residência valido até 2011.

2- O senhor Pierre N´Dé é suspeito de alguns crimes económicos e de atentado à saúde pública, segundo denuncia feita ao Ministério Publico.

3 – Por achar que o Ministério Publico denotou alguma demora ou incompetência em dar seguimento à tal denúncia, o Governo resolveu cancelar o título de residência do senhor Pierre e decretar a sua expulsão administrativa, sem sequer ser julgado pelos crimes graves que presumivelmente cometeu.

Chamo a atenção para o facto de não estar em causa a questão dos crimes que o senhor Pierre presumivelmente cometeu, e digo presumível, porque um dos traços estruturantes dos direitos fundamentais dos cidadãos é o princípio da presunção da inocência, que diz claramente que todos somos considerados inocentes até a sentença transitar em julgado. Quanto a esse ponto, caberá aos tribunais decidir se ele é culpado ou inocente e aplicar a respectiva sanção, como é (ou devia ser) apanágio de um estado de direito democrático e nunca ao Governo, sob pena da violação clara de um dos princípios sagrados do tal estado de direito democrático, que é o princípio da separação dos poderes.

CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA DEMOCRATICA DE SÃO TOMÉ E PRINCIPE:

Artigo 6.º
Estado de Direito Democrático


1 - A Republica Democrática de São Tomé e Príncipe é um Estado de Direito democrático, baseado nos direitos fundamentais da pessoa humana.

Artigo 7.º
Justiça e Legalidade


O Estado de Direito Democrático implica a salvaguarda da justiça e da legalidade como valores fundamentais da vida colectiva.

Artigo 69º.
Princípio da separação e interdependência dos poderes


1 - Os órgãos de soberania devem observar os princípios da separação e interdependência estabelecidos na Constituição.

Ou, trocando por miúdos e definindo o princípio do estado de direito: Um estado de direito tem expressão jurídica ou constitucional através de princípios e regras jurídicas que se encontram dispersos pelo texto constitucional. Há uma subjugação do poder a uma serie de princípios e regras que concedem garantias, liberdades, igualdade e segurança às pessoas.

Como dizia, o que está em causa, é sabermos se realmente o Governo pode ou não, expulsar administrativamente do país um cidadão estrangeiro com o título de residência válido. Voltando outra vez à CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA DEMOCRATICA DE SÃO TOMÉ E PRINCIPE:

Artigo 17.º
Estrangeiros em São Tomé e Príncipe


1 - Os estrangeiros e os apátridas que residam ou se encontram em São Tomé e Príncipe gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres que cidadão são-tomense, excepto no que se refere aos direitos políticos, aos exercícios das funções públicas e aos demais direitos e deveres expressamente reservados por lei ao cidadão nacional.

Artigo 41.º
Extradição, expulsão e direito de asilo


3 - A expulsão dos estrangeiros que tenham obtido autorização de residência, só pode ser determinada por autoridade judicial, assegurando a lei formas expeditas de decisão.

Creio que o artigo 41/3 da nossa constituição não deixa margem à qualquer interpretação dúbia e rebate qualquer outro tipo de argumentação que o Governo poderia elencar, já que diz claramente que qualquer cidadão estrangeiro que tenha obtido uma autorização de residência (que é o caso do senhor Pierre) só pode ser expulso por autoridade judicial, ou seja, os tribunais. E como todos os juristas sabem (ou deviam saber), o princípio da primazia da constituição (outro princípio sagrado de um estado de direito) define claramente que nenhuma outra lei, pode moldar, modificar ou ser contrária aos preceitos constitucionais, aliás, não é em vão que a constituição de um país é muitas vezes apelida de “LEI FUNDAMENTAL “ ou ” LEI MÃE”.

Em condições normais, a situação ficava resolvida com a evocação do nº 3 do artigo 41 da nossa constituição, mas já que o Governo no seu comunicado fez alusão à uma outra lei, que tem baralhado à compreensão de muita gente, convém também esclarecer esse ponto de uma vez por todas. Trago então à baila a Lei nº 5/2008, Lei sobre o Regime Jurídico dos Cidadãos Estrangeiros em São Tomé e Príncipe, que desenvolve e complementa os preceitos constitucionais que tocam à situação dos estrangeiros no nosso país:

Artigo 54.º
Cancelamento do certificado de residência


1 - O certificado de residência é cancelado sempre que o seu titular tenha sido objecto de uma decisão de expulsão, por via judicial, do território nacional ou quando tenha sido emitido com base em declarações falsas ou enganosas, documentos falsos ou falsificados, ou através da utilização de meios fraudulentos.

5 - Pode ser cancelado o certificado de residência por razões de ordem pública ou segurança pública.

6 - É competente para o cancelamento o Ministério tutelar da Ordem Interna, com a faculdade de delegação no director do Serviço de Migração e Fronteiras.

Por descuido, má fé ou pura incompetência, o comunicado do Governo apenas faz referência aos pontos 5 e 6 do artigo 54, omitindo o ponto 1, que define claramente que neste caso, embora o Governo seja competente para cancelar o certificado de residência de um cidadão estrangeiro, apenas o pode fazer depois de uma decisão de expulsão por via dos tribunais. E se mesmo assim, ainda subsistir duvidas quanto à ilegalidade do acto de expulsão administrativa praticado pelo Ministro da defesa e ordem interna, a mesma Lei esclarece a situação num artigo posterior:

Artigo 74.º
Âmbito de aplicação e fundamentos da expulsão administrativa


1 - O regime da expulsão administrativa é aplicável ao cidadão estrangeiro não residente.

Posto isso, jeito de conclusão, posso dizer que o Ministro da defesa e ordem interna, num assombro de autoridade com cunho ditatorial meteu a “pata na poça” e agiu de forma precipitada, desrespeitando todas as leis da república e os direitos fundamentais da pessoa humana e pior, quer persistir no erro, fazendo passar a imagem a uma opinião pública bastante sugestionada e mal informada, de que o Governo é o dono da razão e que a Ordem dos Advogados e os Tribunais são os “maus da fita” e não querem deixar o Governo trabalhar na defesa dos interesses superiores da Nação. Onde é que andam, afinal, os juristas credenciados e competentes que fazem parte desse Governo?! Como poderemos lutar pela tão almejada credibilização da justiça se é o próprio poder executivo que sistematicamente inflige golpes desses à credibilidade do poder judiciário?! E noutro patamar, mesmo que tivesse razão no processo de expulsão administrativa, conceder apenas 2 horas para alguém que tem toda a sua vida estabelecida num país, pegar um avião e deixar tudo para trás, pelos supostos crimes em causa, é de uma desumanidade assustadora. Imaginem só se isso acontecesse com um conterrâneo nosso que luta pela vida, em algum país estrangeiro?! Será que o sentimento seria o mesmo?! Será que não estaríamos a essa hora a gritar quidalè e a condenar o país em questão e os seus cidadãos, acusando-os de xenofobia e quiçá, se fosse um país Europeu, de racismo?! Será que em algum momento alguém pensou que isso poderia causar algumas fracturas nas nossas relações com os Camarões?! Sem falar que no final, se a tal ordem de expulsão tivesse sido cumprida, os tais crimes graves contra a saúde pública que o homem supostamente cometeu e que estão na génese desse imbróglio todo, ficariam sem julgamento e consequente punição. E esta, hein?! Afinal é mais importante punir os supostos criminosos ou correr com eles do nosso país sem os fazer pagar pelos crimes que cometeram, abrindo um precedente grave que convidaria outros estrangeiros a fazerem o mesmo?!

Num país sério, essa trapalhada toda seria motivo suficiente para fazer rolar “a cabeça” de algumas pessoas, em defesa do princípio da legalidade da administração e do princípio da protecção da confiança dos cidadãos (outros princípios fundamentais de um estado de direito democrático), mas como sei perfeitamente que no caso de STP era pedir demais, um simples reconhecimento da parte do Governo de que cometeu um equívoco seria bem-vindo e ajudava a acalmar esse mar de reacções apaixonadas que tem se visto por ai, fundadas em informações falsas e simpatias partidárias, como já é de praxe em São Tomé e Príncipe. Se o homem cometeu um crime, que seja então julgado e punido. Se a pena for superior a dois anos de prisão, que lhe seja decretado também a pena acessória de expulsão. Mas que o processo siga pelas vias judiciarias, respeitando as leis e os direitos dos cidadãos e nunca pela via administrativa, obedecendo apenas a vontade de políticos que advogam a regra do “quero, posso e mando”.